Escalada no Cho Oyu
por Agnaldo Gomes*
Em uma escalada em alta montanha existem muitos fatores que podem determinar o sucesso ou não do que você se propõe a fazer, e este “sucesso” não é apenas chegar ao cume: voltar de uma expedição inteiro e feliz é um baita sucesso.
Quando decidi tentar escalar o Cho Oyu em 2010 queria realizar um sonho. Mais do que chegar ao cume, queria somente estar perto de um destes gigantes com mais de 8000 metros.
Nossa expedição começou com um pequeno terremoto em Katmandu na noite antes de sairmos rumo ao Tibete, acordei assustado com a cama tremendo e as portas do guarda roupa batendo, confesso que terremotos não são minha especialidade e não sabia se me enfiava embaixo da cama ou saia gritando pelo corredor, mas não vou contar a minha escolha…
Levamos 11 dias entre sair de Katmandu e chegar ao campo base principal do Cho Oyu que, devido a elevada altitude (5700m), 58 metros mais alto que o cume do Elbrus), existem 2 campos antes, um a 5000 m e outro a 5300 m.
Durante este tempo, também fomos parando nas cidades Tibetanas e fazendo caminhadas de aclimatação, a cada dia sempre indo um pouco mais alto.
O campo base do Cho Oyu é lindo, com toda a rota de escalada na sua frente. Ao mesmo tempo, intimida e provoca aquela espontânea frase, “ferrou”! (Para não dizer outra palavra). No campo base, temos uma série de facilidades como banho a cada 3 ou 4 dias, boa comida e uma temperatura amena por volta dos 10 graus negativos à noite, mas, pela altitude, qualquer atividade te deixa ofegante e te faz pensar se você está realmente preparado pelo que vem pela frente.
Depois de um dia de descanso e algumas caminhadas de aclimatação, subimos em direção ao campo 1 a 6400 m, um caminho de 7 horas por uma moraina com muitas pedras soltas e, para finalizar, uma subida íngreme e escorregadia que muito lembra a canaleta do Aconcágua. Xingar e duvidar da sua sanidade mental neste trecho é comum.
Cheguei cansado e, nesta noite, nem me atrevi a jantar, pois a fome era inexistente, comi uns chocolatinhos e cama, ops, quer dizer saco de dormir. O Campo 1 é um dos lugares mais bonitos que já acampei, uma crista nevada com as barracas empoleiradas e o Cho Oyu de novo na sua frente.
Na manhã seguinte enquanto nos preparávamos para subir até 6700m, para aclimatar melhor, uma avalanche despencou fora da rota de escalada, mas, mesmo assim, deu aquela vontade de voltar para a “segurança” da barraca. Como estávamos no fim das monções, ainda havia muita neve fresca na montanha e, durante a noite seguinte, escutei mais duas avalanches.
Depois de 2 dias dormindo a 6400 m voltamos ao base para descansar por alguns dias e nos preparar para a segunda subida de aclimatação que desta vez nos levou até 7200 m no campo 2.
Esta subida ao campo 2 me deixou apreensivo, afinal, era uma altitude em que eu nunca havia estado e no meio do caminho entre o campo 1 e o 2 temos a subida do Ice Cliff, um dos trechos mais técnicos e íngremes da montanha e onde uns dias atrás havia ocorrido uma avalanche ferindo 2 sherpas. Não sei se por causa da adrenalina e com todos os meus sentidos em alerta, a subida do Ice Cliff não foi tão dura quanto eu esperava, mas depois das 3 horas que ainda faltavam para chegar no campo 2, jesuiiis, como eu sofri, uma subida longa e interminável.
Acordei bem, com a maravilhosa vista deste campo, o cume do Cho Oyu parecia tão pertinho… Me equipei e saí para tirar algumas fotos, o clima estava ótimo. Mas, mal sabia que o pior dia de todos estava por vir, logo que comecei a descida em direção ao campo 1, 800 metros lá embaixo, me senti exausto, mas, pô, na descida? É… foi a única vez que senti que podia fazer alguma besteira e me colocar em risco devido ao meu cansaço. Fui descendo trôpego, lentamente, tentando raciocinar o mais claramente que conseguia, até nas partes menos inclinadas eu sofria e ainda tinha pela frente a descida do Ice Cliff, 3 lances de rapel e eu naquele estado.
Consegui descer sei lá como, mas dali em diante fiquei com sérias dúvidas se conseguiria chegar ao cume e principalmente descer em segurança, senti que a expedição podia estar acabando para mim. Meu estado de letargia era tão grande que lembro de ficar 30 minutos para conseguir tomar um gole d’água, 15 minutos pensando “tenho que me hidratar”. Aí, consegui abrir a tampa do cantil, depois mais 15 minutos pensando “esta porra (na montanha usamos palavrões mesmo) está aberta e vai derramar no saco de dormir” e só depois esticar o braço e tomar um gole.
No dia seguinte acordei melhor e descemos para o campo base, que apesar da altitude, que paraíso! Depois de um dia de descanso no campo base, já estava recuperado e me sentindo bem melhor. Mais alguns dias de descanso (nestes dias no campo base foram consumidos 4 livros, assisti 10 filmes e escutei um trilhão de músicas, boas e ruins) e lá estava de novo no caminho ao campo 1, só que desta vez era para ir ao cume…O plano era dormir uma noite em cada campo e tentar a subida final a partir do campo 3 a 7600 metros de altitude. Seriam 5 dias entre a subida e descida até voltar ao campo base e dá-lhe chocolate. Durante estes 5 dias não consegui comer nada além disto, ainda não posso ver Sonho de Valsa na minha frente.
A subida foi boa, mas, pensar na descida e no cansaço que havia sentido alguns dias atrás, me deixava aflito. Tinha prometido para mim mesmo, antes mesmo da expedição, que só tentaria o cume se estivesse me sentido bem, que não arriscaria nada, mas, como saber, se travei na descida? E se chegasse no topo e na hora de dar meia volta ficasse estagnado? Isto estava mexendo com meu psicológico fortemente, aliás, na próxima montanha, além do treinamento físico, vou fazer um treinamento mental com algum psicólogo. É incrível como este lado afeta a escalada, já tinha sentido isto em outras montanhas, mas no Cho Oyu foi drástico, é uma luta constante entre corpo e mente e as incertezas do que você tem pela frente.
Depois de uma boa subida saindo do campo 2 estava no campo 3, a 7600 m, nem podia acreditar, entrei na barraca e comecei a preparar as coisas, íamos acordar as 22h e sair à meia noite. Só depois de um tempo me toquei que já tínhamos oxigênio disponível para usar ali, dormiríamos com O2 a 1 litro por minuto dividido para mim e meu companheiro de barraca. Na subida ao cume ia usar 3 litros por minuto o que dava uma autonomia de 10 horas, era isto: 10 horas para ir ao cume e voltar para uma altitude segura.
Escalar com oxigênio suplementar te ajuda muito! Mas uma pergunta que eu sempre fazia para quem já havia passado por isto era “mas parece que você esta escalando em qual altitude, 5000, 6000, 7000m? Ninguém conseguiu me responder e eu agora também não sei a resposta. O que sei é que você continua cansado e andando a passos de cágado, que é mais lento que a tartaruga, não é colocar o O2 e sair saltitando, infelizmente.
Um pouco depois de começar a subida, vejo surgir na minha frente um paredão de rocha, já sabia dele, era a Yellow Band uma parede vertical de rocha a quase 8000 metros que você tem que subir com o grampon, numa escalada mista com gelo e rocha e sem muito apoio. O trecho é curto e a corda fixa ajuda, mas para mim parecia que tinha muitos metros, bufei muito ali, tentava puxar o ar sem parar e fiquei com um medinho (apavorado mesmo).
Subindo no meio da noite tentava absorver o máximo o que aquela experiência estava me proporcionando, mas confesso que não absorvi muito, tudo passou muito rápido meio que um sonho que quando você acorda só consegue lembrar de algumas partes, acho que vou ter que repetir, hehehe.
Por volta das 5h40 cheguei no cume, ainda não havia amanhecido completamente e infelizmente uma névoa não me deixou ver o Everest e as montanhas próximas. Depois de 20 minutos comecei a descer, seriam 1800 metros até o campo 1 e depois de duas paradas nos campos 3 e 2, às 18h estava no campo 1, muito cansado, mas dono dos meus movimentos e aliviado por ter conseguido descer a salvo.
Como dizem, alpinista tem memória curta, os sofrimentos desaparecem de nossa mente num curto espaço de tempo e, aí, já está na hora de começar a sonhar com as próximas montanhas. Algumas vezes na escalada, eu pensava o quanto estava sofrendo para me lembrar daquilo e não me meter a besta de novo, mas adivinha… já esqueci.
Agora é seguir sonhando com as próximas montanhas.
Namastê!
*Agnaldo Gomes é formado em Geografia pela PUC – São Paulo. É guia de montanha há 15 anos e pratica esportes outdoor há 25. A paixão pelas montanhas nasceu nas aulas de Geografia, quando cursava o ensino médio e desde então o amor pelas montanhas e a necessidade de estar ao ar livre somente aumentou. Tem em seu currículo expedições em alta montanha, travessias de bicicleta e caiaque oceânico. Em 1990 fez sua primeira expedição em altitude, no Aconcágua, na Argentina. Realizou cursos de escalda em rocha, gelo e primeiro socorros. Participou e liderou expedições nas montanhas mais altas de vários países, entre elas o Aconcágua na Argentina,Huascaran e o Pisco no Peru, Cotopaxi, Illiniza e Chimborazo, no Equador, Huyana Potosi, Pequeno Alpamayo, Illimani e Sajama, na Bolívia, Elbrus, na Rússia, Kilimanjaro, na Tanzânia e o Island Peak, no Nepal. Em setembro de 2013 participou de uma expedição ao Cho Oyu, a sexta mais alta montanha do planeta, com 8201 metros, localizado na fronteira do Nepal com o Tibete. Alcançou o cume no dia primeiro de outubro e se tornou um dos poucos alpinistas brasileiros a ter escalado uma montanha com mais de 8000 metros.