ARQUITETANDO SONHOS & CONSTRUINDO PESSOAS E MONTANHISTAS
Por Flávio ”Chiko” Kitahara, em primeira pessoa
dedicado para Liane Aoki Ueda
Ao longo de mais de duas décadas de dedicação à formação de montanhistas, muita gente me questionou – se não é profissão, não está ganhando dinheiro, o que você está fazendo lá? Podia ter escalado com os amigos, viajado ou ter feito nada ou tudo com as pessoas amadas e queridas…
São anos de alegrias e tristezas, ganhos e perdas, de tantas superações e decepções… Este way of life me permitiu conhecer centenas de pessoas, das mais variadas origens, profissões, crenças, opções religiosas e sexuais. Muitas sociáveis, amigáveis e outras nem tanto. O que seria do Mundo sem a diversificação?
Alguns alunos me marcaram com um único dia de vivência, um único gesto, um único olhar. Concluídos os cursos, alguns ficam, outros seguem seu caminho por vários motivos e prioridades inquestionáveis. Longe disso. Apenas seguiram seus caminhos.
Dedicação tem um custo, mas também tem suas recompensas. Nos inúmeros cursos que organizamos, derrubamos barreiras, aproximamos pessoas, afastamos receios e temores que resultaram na formação de casais, namorados e cônjuges, muitas vezes agraciados com frutos dessas uniões. Desencorajamos diversos casais que se conheceram nos CBMs a colocarem nomes nos filhos em homenagem ao GPM ou a instrutores…
Casais que superaram seus obstáculos comuns em pleno CBM queriam batizar o filho de “Crux*”… Desencorajamos. Imaginem a mãe se dirigindo ao filho: – “Crux*, depois de você nosso caminho ficou mais fácil!”.
* Para quem não é do ramo, a sequência, lance ou ponto mais difícil da via de escalada é popularmente conhecido como “Crux” no montanhês.
Nessa caminhada, uma história que ficou no baú por anos e que talvez seja o momento de revelá-la.
No início da vida profissional, trabalhei de out/1995 a mai/1997 em uma multinacional japonesa chamada Takenaka do Brasil Construtora Ltda. Lá tive a oportunidade de conhecer a eminente arquiteta Liane Aoki Ueda, uma das responsáveis pelo projeto da fábrica da Yazaki do Brasil. Seu perfil e sua conexão com a Natureza me fizeram arquitetar um plano para convidar ela e o marido, Nilton Ueda, para o Curso Básico de Montanhismo e Escalada em Rocha (CBM) que até então era vinculado à Associação Brasileira de Ex-Bolsistas no Japão (ASEBEX). O Grupo Paulista de Montanhismo (GPM) seria fundado seis anos mais tarde.
Na véspera do início do CBM de 1997 – como muitos sabem – Liane lembrou o Nilton que estava inscrito no curso, para sua surpresa… Além do casal, participaram os irmãos Alex e Ivan Zacharauskas, a então namorada deste, Vanessa G. Malagó, o casal Renata Hidemi Hatae e Maurício Yukio Toda, Mamy Analívia Suko, Meire S. Morokawa, Angela Akiko Yamada e Patricia Mitiyo Gushiken. Da Takenaka também participaram os iminentes arquitetos Alexander Yamamoto e Fábio Makishi.
Participaram os instrutores e monitores Claudia Ikeda, Cristina Hirashima, Fábio”Camarão” Vicenzotto, Hiroji “Rapa” Shimabucuro, Marcos “Santa” Hirata, Olga Emi Morita e Wilson Masayuki “Massa” Kubatamaia.
Meses depois, em jul/1998, o casal Ueda abriu sua residência para um jantar de confraternização. Para quem não conhece, a casa deles fica numa vila muito charmosa próxima ao metrô Hospital São Paulo. Muito aconchegante e confortável.
Em determinado momento da confra, notei os porta-retratos sobre a estante e em destaque, fotos de uma linda criança de colo.
Aproveitando que a Liane se aproximou, comentei sobre as fotos:
– Que linda criança! Ela está dormindo no quarto?
– ´Não, minha filhinha faleceu recentemente… – respondeu-me a Liane, segurando as emoções…
– Ah, meu Deus! Sinto muito… – Constrangido, eu realmente quis cavar um buraco bem fundo para me atirar dentro e, talvez, retornar dali a 20 anos…
Diante do meu indisfarçável constrangimento, a Liane teve a grandeza de me confortar:
– Não se preocupe, você não sabia.
Beatriz Ueda nasceu em 21/12/1995 e, antes de completar 8 meses, deixou-nos fisicamente em 10/08/1996.
Após o CBM de 1997, a Liane me confidenciou:
– O CBM me trouxe novamente a vontade de viver!
Essas palavras me fizeram refletir sobre o CBM. Não era somente ensinar a escalar montanhas. Não se tratava somente do fomento ao Montanhismo, da divulgação de um esporte, da conexão com a Natureza, de difundir um estilo de vida. Era muito mais. Podíamos levar uma energia positiva, esperança e alegria.
Aquelas palavras da Liane me motivaram a continuar com o voluntariado durante anos.
A Beatriz convive em nossos corações e, em 23/03/1999, ela ganhou uma irmãzinha: a Denise Ueda (Dede)!
Rosângela Nakashima, minha noiva à época, e eu ficamos tão felizes com a “estreia” de Dede que, com apenas 4 anos, deu o ar de sua graça como pajem em nosso casamento em maio de 2002.
Desde 2000, Liane e Nilton organizam uma confraria anual sempre no Parque Nacional de Itatiaia (PNI) para reunir os amigos, montanhistas e karatecas, invariavelmente no feriado de 4 dias de Corpus Christi, com base na Pousada dos Lobos. Com a casa cheia, vários grupos eram formados para os mais variados destinos dentro do PNI.
A Liane sempre guiou os grupos nas Confras e em 2012, ela guiou minha sogra com então 65 anos até o cume da Pedra do Altar, 11º ponto culminante do país.
E a partir do ano seguinte, Liane iniciou voluntariamente como instrutora no CBM, ela lecionava Filosofia e História do Montanhismo e Ética e Mínimo Impacto.
Em 2010, Liane e sócia abrem a Global Tailor Made Idiomas (GTMI) na Rua Alexandre Dumas em Santo Amaro. Entre atividades de intercâmbio internacional, Liane lecionava o idioma inglês.
Durante mais de duas décadas de CBM, descobri que nem sempre bons escaladores são bons instrutores e vice-versa. Bons escaladores nem sempre tem a empatia, comunicação, didática e paciência tão necessários para a arte de lecionar. E a maioria quer ministrar aquilo que domina ou que gosta.
Tenho referência de que um bom instrutor é aquele que aceita o desafio de ministrar uma disciplina que ninguém quer dar e transformar aquele assunto desinteressante em uma aula-show que contagia e cativa, retém a atenção dos alunos e transmite conhecimento. Assim era a Liane, ano após ano, buscava a perfeição.
Paloma Altran, aluna do CBM 2017 – segunda turma, postou no grupo de whatsapp como foi sua vivência com a aula da Liane.
A Liane era a “Bossa”, a verdadeira chefe do Boss (risos) no Grupo Paulista de Montanhismo. A conheci durante o Curso Básico de Montanhismo, em 2017, durante a aula de ética no montanhismo. Lembro-me de ter sido a aula que eu mais gostei. Aprender as técnicas, os nós, os procedimentos eram muito legais, mas o que me toca mesmo, de verdade, são os momentos de reflexão… E, naquela tarde de 2017, ao ouvi-la durante a aula, algumas lágrimas começaram a brotar… Segurei o choro, disfarcei… ela falava sobre conexão, reconexão, sobre ter um propósito, sobre respeito e companheirismo… sobre como, a partir do montanhismo, aprendemos sobre nós mesmos, sobre os outros e sobre a vida… foi uma aula muito linda.
A Liane foi um dos melhores instrutores de montanhismo que já presenciei e por ocasião da comemoração do 15º aniversário do Grupo Paulista de Montanhismo, foi um dos 15 instrutores homenageados por reconhecimento à dedicação e contribuição para a formação de montanhistas.
A Liane nos deixou fisicamente no último 10 de agosto, mesma data que a Beatriz, sua filha, partiu 24 anos atrás. A Beatriz foi guiando a via e a Liane de segundo**. Estão comemorando o reencontro no cume.
** Para quem não é do ramo, a escalada normalmente é praticada em dupla ou trio, o que vai na frente é o Guia seguido pelo(s) colega(s) em segundo (e terceiro).
Fazia poucos meses que Beatriz havia partido quando Liane e Nilton fizeram o CBM em 1997, a meu convite. Desconhecia o fato e não consigo imaginar o quanto estavam frágeis, vulneráveis e susceptíveis; por quantas dificuldades e provações passaram à época junto com o curso.
Minha motivação até hoje é saber que o CBM ajudou Liane a superar aqueles momentos, de trazer de volta a vontade de viver, segundo suas próprias palavras.
Mesmo sem se dar conta, a Liane conseguiu retribuir toda essa energia positiva que recebera um dia, numa época difícil, através de suas aulas cativantes nos últimos anos. Ensinou, motivou e inspirou alunos e instrutores. Sempre será uma referência e um exemplo a ser seguido. Nunca saberemos ao certo quantas pessoas ela ajudou levando luz, sabedoria e esperança com sua alegria e energia radiantes. Certamente eu fui um deles!
Janeiro 2021