Meu pai e o amor pelas montanhas
Cresci em região de montanha. Nascida em Cunha, bem no alto da Serra, envolta pela Bocaina, Mantiqueira e Serra do Mar. Em meio àquele mar de morros fui recebida nesse mundo.
Aos 4 anos, minha família se mudou para Pinda, aos pés da Mantiqueira. Me lembro de acordar vendo a neblina descer de Campos do Jordão, ir para o colégio quase em um filme de suspense, de tanta névoa, tão cedo.
Tenho memória afetiva com as montanhas e talvez isso explique esse sentimento de pertencimento, de querer sempre estar próxima, ser encantada por elas. Compreendo-as com uma grande e poderosa força da natureza, majestosamente postas.
Me lembro também que as primeiras memórias que construí em montanha teve como responsável meu pai. De pequena, ele me levava no colo no teleférico de Campos do Jordão, nos ombros pra subir a Pedra da Macela (um pico a 1800m, em Cunha), fazíamos caminhada pelas ruas de terra do município, sempre com ele, sempre na natureza. As minhas primeiras caminhadas tiveram meu pai como guia, como foi a vida toda, me puxando, incentivando, fazendo companhia. Era o momento de estarmos juntos, em contato com a natureza, integrados.
Uma vida toda cercada de montanhas e do afeto do meu pai.
Em 2019, ele fez sua passagem. E este foi um dos anos mais desafiadores para mim. Não só por entender e permitir emocionalmente que ele fosse, mas também pelos desafios da carreira, a mesma que herdei dele. Advogados, os dois. Segui seus passos, no trekking e na vida.
Vivi o luto de sua morte de forma bastante intensa, precisei resolver infinitas coisas, do ponto de vista burocrático e também emocional. Não bastasse isso, sai da empresa em que trabalhava. Era muita coisa, era um redemoinho de coisas que me arrastava e engolia.
Era um daqueles momentos na vida em que estamos em uma encruzilhada e tudo parece desabar, então a gente tem de decidir “entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar, porque no caminho incerto da vida, o mais importante é o decidir.” (contém alteração), Cora Coralina.
E foi então que eu decidi. Era véspera dos meus 30 anos, agosto de 2019. Eu resolvi que de toda aquela sequência de fatos amargos, bruscos, eu buscaria algo palatável para mim. Não era justo celebrar minhas 3 décadas ainda submersa no caos. Comprei uma passagem só de ida para Santiago do Chile e fui viajar, tomar um fôlego, celebrar.
Decidi pela capital chilena faltando uma semana para o meu aniversário. Embora cercada pela cordilheira, Santiago é uma cidade muito cosmopolita, e eu precisava estar nas montanhas, cresci com elas, com meu pai me levando para fazer caminhadas. Precisava respirar as montanhas e reavivar a memória dos momentos com ele.
Fui então para o sul do Chile, uma cidadezinha chamada Pucón, com neve e um vulcão para subir. Surgiu a proposta de um hiking no gelo. O vulcão, de alguma forma, trazia a noção de dor que havia sentido, estava adormecido, externamente estável e internamente pulsante. Volcán Villarica.
Não estava tão preparada fisicamente quanto gostaria, mas a vida não nos prepara para os maiores desafios. Quando a gente dá por si, já está lá.
Foram 6 horas de ascensão, pouco mais de 7 km percorridos em “zigue-zague”, ganho de 700m de elevação. Um total de 60 microinfartos por segundo e a sensação de estar mais viva do que nunca! É isso o que o esporte faz por você, lhe devolve a vida! As montanhas permitem a nossa conexão com a gente, com o nosso propósito. Depois de todo aquele turbilhão, uma avalanche emocional, eu estava viva! A natureza me reconectou comigo, com a minha história.
No trajeto, tive suporte de uma agência local, chamada “Antü, Ríos y Montañas”, sob comando de Joaquin Figueroa, que ofereceu todo aparato e possibilitou aos interessados realizarem a prática de forma segura. Eles emprestam, inclusive, as roupas apropriadas para neve. São disponibilizados a bota dupla, o crampon e a piqueta clássica. No momento do retorno, fomos recebidos com vinho e tira-gosto, o que após um dia de tanto de esforço foi bastante recompensador. Além de possibilitar o caminho aos turistas, a agência também ministra cursos na neve, capacita montanhistas com interesse nessa vivência técnica. http://www.antupucon.cl/wp/
No topo é possível ter uma incrível vista da região e do vulcão envolto por névoa/vapor. A descida foi a parte mais divertida do dia e estrategicamente pensada para nossa criança interior. Utilizamos uma base de plástico para que pudéssemos descer de “ski-bunda”. Foi daqueles momentos em que a gente se permite ter 4 anos novamente, ser conduzida na trilha pelo pai, resgatar nossa versão mais frágil, que passou por tanto nos últimos tempos. A menina que era levada pelo pai para as trilhas na Mantiqueira ainda estava ali, lidando com tudo, tentando não enlouquecer, ela estava ali e precisava daquele respiro.
Essa foi a viagem dos meus 30 anos e foi especialmente importante pelo contexto em que estava inserida, por tudo o que estava vivendo. Eu estava imersa em meu continente, celebrando minhas 3 décadas de sonho, de sangue e de América do Sul. Estava sonhando, vivendo e emergindo de todo caos. Eu estava me tornando mais forte pelas experiências trazidas, mas sem perder minha essência, minha criança de 4 anos levada pelo pai.
Por fora robustecida, por dentro ‘una niña’, como um vulcão.
Ana Dulce Leite, 23/09/2022
Montanhista de nascença (Cunha) e agora também por formação (CBM 2022 – 40ª
turma)
Advogada e Professora. Dedico este texto ao meu pai, com todo meu amor, por seu aniversário de 80 anos.