Pico da Bandeira só para Mulheres
Saímos de Taboão da Serra (SP) às 4h do dia 07/07/2022, dirigi pela Dutra, primeira parada em Itatiaia às 8h para tomar café da manhã e apreciar o Pico das Agulhas Negras nas alturas. Continuei dirigindo, uma das coisas que adoro fazer, e paramos para almoçar na cidade de Três Rios (RJ) por volta das 12h. Às 15h estávamos em Leopoldina (MG) comendo um pão de queijo com linguiça e nos preparando para o trecho final da nossa viagem.
Estávamos eu, minha filha mais velha Luiza de 14 anos, minha sobrinha Daiany e minha cunhada Ana, com destino ao Alto Caparaó (MG) para conquistarmos o Pico da Bandeira, realizando a travessia Tronqueira (MG) x Casa Queimada (ES).
A trilha foi ideia da Daiany, que nunca tinha feito uma trilha longa na vida. Foi um pouco de preocupação de tia e incômodo, do tipo, já fiz várias trilhas, mas nunca subi o terceiro pico mais alto do Brasil. Não deu outra: Daiany, vou com você! A princípio, só convidei a Ana, mas a Luiza pediu para ir junto e, desesperada, provou para mim de todas as formas que aguentava a empreitada.
Chegamos às 19h15 no Alto Caparaó (997 m de altitude), com carinha de cidade de interior e abraçada por uma linda cadeia de montanhas.
Após o jantar, uma última revisada nas cargueiras e uma recuperadora noite de sono. Pela manhã, tomamos café e fomos conhecer o Parque Nacional do Caparaó. Com o apoio de carro, visitamos o Vale Verde, o Mirante Volta do José Pedro e a Cachoeira Bonita.
Voltamos ao Alto Caparaó, almoçamos, fizemos checkout na pousada e contratamos um jipe que nos levou até o acampamento da Tronqueira (1.970 m de altitude), onde iniciamos a nossa trilha às 14h30 do dia 08/07/2022.
O começo da trilha é uma “escadaria de pedras” que nos ajuda a ganhar altitude rapidamente.
O caminho para o acampamento do Terreirão é beirando o Vale Encantado, à esquerda da trilha. É possível avistar belos fios d’água e diversos pontos fáceis para acesso à água ao longo do caminho. Lembrando que nestes pontos, a água precisa de tratamento, enquanto nas áreas destinadas aos acampamentos, há água potável.
Após quase 40 minutos de caminhada começamos avistar o Pico da Bandeira, já envolto em nuvens que eventualmente o cobriam.
Já dizia Gessinger: Nem tão longe que eu não possa ver… Nem tão perto que eu possa tocar… Nem tão longe que eu não possa crer… que um dia chego lá.
Chegamos no Terreirão por volta das 17h15 a tempo de ver o pôr do sol ofuscado por um “eclipse nuvial”.
Já tinham algumas barracas montadas e começamos a pensar onde montar a nossa, daí me lembrei dos motivos pelos quais me inscrevi no CBM (Curso Básico de Montanhismo), que ia começar só no fim do mês. Entre eles: como escolher o melhor lugar para montar a barraca?
Chegamos com roupas de mangas curtas, o céu escureceu rápido e a temperatura caiu mais rápido ainda. Colocamos uma jaqueta e montamos as barracas com os dedos doendo de frio.
Nossas barracas são do tipo que dá para mudar de lugar antes de fixar, então as levamos de um lado para o outro, sem muito critério, até deixar no lugar que achamos melhor .
Começamos fixar as barracas, ferrinho entortando, soltando, voltava a prender, voltava a soltar, desentorta daqui, desentorta dali E aquela dúvida: Será que fixamos corretamente as barracas? Pelo menos elas não saíram voando
Trocamos de roupa, vestimos a segunda pele, polar, corta vento, luva, luva de neve, gorro, meia por baixo, meia de neve, meia de lã de carneiro e o pé não coube mais no tênis .
Montamos a mesa e fomos jantar. O relógio marcava 7°, 6°, 5° graus às 19h53, e só ia baixando, mas a sensação térmica era bem menor por causa do vento.
Eu queria mesmo uma comidinha quente, mas não tenho boas experiências com fogareiro nas alturas. Daí surgiu outra perguntinha: Qual o melhor fogareiro para as alturas?
Na falta do fogareiro, a ideia era fazer o esqueminha de cobrir a lata de atum com papel, molhar com óleo e tocar fogo. Abrimos a lata, molhamos o papel e tentamos tocar fogo nele… Quem disse que a gente conseguia… Juntou todo mundo numa rodinha para não deixar o vento passar, usa isqueiro, fósforo, risca de um jeito, risca de outro, molha mais o papel, o vento passou de todos os lados… Colocamos as comidas em volta para ajudar… Nada… Esquece e vamos comer o atum frio mesmo…
A gente queria muito jogar truco, mas ventava muito e o frio estava demais. Fomos para as barracas entrar no saco de dormir, e no de emergência também. Ainda demorou para nos esquentarmos dentro do saco. A barraca não parava quieta, balançava muito por causa da ventania. Depois de alguns cochilos, desarmamos o acampamento, arrumamos as cargueiras e iniciamos o ataque ao pico às 3h.
A trilha noturna nos proporcionou uma linda vista do céu estrelado, com direito a apreciar a mancha branca da Via Láctea por trás das estrelas. Eu tive a honra de contemplar quatro estrelas cadentes. O céu neste lugar é um dos mais propícios para observar estrelas cadentes.
Essa foto que a Ana tirou foi só uma palhinha, viu… Ver o céu ao vivo é indescritivelmente lindo e não tem nenhuma câmera que consiga capturar o feito.
Seu eu pudesse ao menos te contar… o que se enxerga lá do alto (A Montanha, Engenheiros do Hawaii).
Mas os olhos não podiam ficar só no céu. Continuamos pela trilha, que é muito bem sinalizada e os totens brilhavam à noite quando iluminados pela lanterna. Mas em alguns trechos o coração batia mais forte. A neblina chegava e nos impedia de ver os totens… Medo de sair da trilha, mas era só aguardar um tempo que a neblina se dissipava.
Além do ritmo mais lento, paramos com mais frequência também nesse trecho porque o corpo já sentia os efeitos do ar rarefeito.
O dia começou a clarear e nada de chegar ao pico. A decepção chegando… A Luiza, que a essas alturas já liderava na trilha, queria sair correndo sozinha à frente, mas não deixei. Como deixar minha filha de 14 anos navegando sozinha na escuridão? Estávamos cansadas, noite de sono mal dormida, mochila cargueira nas costas, tanto esforço e vamos perder o nascer do Sol. Se tivéssemos deixado o acampamento montado, só carregando a mochila de ataque… Se não tivéssemos planos de fazer a travessia, teríamos alcançado o alvorecer? Não sei, mas acredito que as coisas são como devem ser, não vimos o sol nascer, mas vimos os primeiros instantes dele acima das nuvens e isso valeu todo o esforço despendido até então. Simplesmente lindo e único!
A visão do Cristo renovou nossa energia. Conquistamos o Pico da Bandeira às 6h30 do dia 09/07/2022 em meio a muita neblina. Após uns 30 minutos, ela se dissipou e pudemos contemplar um Sol acima das nuvens. Maravilhoso!
A 2.891 metros de altitude, no terceiro pico mais alto do Brasil, no descampado, ouvíamos o vento uivar, estava muito forte e o frio era de doer. Eu queria tirar muitas fotos, mas meus dedos doíam. Deixei uma mão na luva de neve e outra de fora. Os cabelos longos da Luiza congelaram, minha jaqueta de neve pendurada do lado de fora da mochila também congelou. Não importava, vesti mesmo assim. Não sei quantos graus faziam, não deu para manusear o relógio neste momento.
Mas a vista que se tem de lá fez passar a dor, o frio, o cansaço, o stress da vida moderna… Passou tudo… É só você e o cume da montanha… Por mais que existam pessoas ao seu redor, é o seu momento com a natureza, com a beleza, com o fora do óbvio. É nesta hora que reconhecemos que todo o esforço realmente valeu a pena. Você pode tocar o sol, estar nas nuvens, acima delas. Elas passam por você, te abraçam e vão embora, levando qualquer coisa ruim, te renovando para continuar a caminhada e começar uma nova vida quando a trilha acabar.
Tiramos fotos junto ao marco geodésico no ponto mais alto, assinamos o livro de cume que fica no pé da cruz. Encontramos um lugarzinho no meio dos arbustos, usamos as mochilas para tentar amenizar o vento e tomamos nosso café da manhã.
Deixamos para trás o Pico da Bandeira às 8h45 e seguimos pela crista em direção ao Pico do Calçado. A vista era linda de ambos os lados da crista e o vento forte que me fazia balançar. Fiquei imaginando que se minha outra sobrinha Lilian, bem magrinha, estivesse lá, o vento a levaria embora. Mais uma perguntinha por questão de segurança: Como nos proteger do vento durante uma caminhada na crista das montanhas? (ainda mais quando se trata de uma pessoa bem magrinha) .
Conquistamos o Pico do Calçado (quarto pico mais alto do Brasil com 2.849 m de altitude) às 10h e tudo corria muito bem. Mal sabíamos o que vinha pela frente. Quem foi que disse que descer é fácil? E descer pelo lado mais íngreme da trilha seria ainda pior.
Logo na sequência deste pico já havia um trecho muito ruim e perigoso. Não dava para ver o que vinha depois. Sinceramente, acho que deviam colocar uma corda fixa neste trecho. É um degrauzinho muito pequeno, que cabe metade do pé, e você precisa ter muito cuidado. Será que eu conseguiria colocar uma corda ali para aumentar a segurança?
A caminhada não rendeu muito em termos de distância. A Ana perguntava a toda hora o quanto havíamos andado e eu respondia Foram só 20 ou 30 metros e ela dizia Mas passou um tempão e só andamos isso? A trilha do lado do Espírito Santo era realmente muito vertical. Pensamos em rapel ou pegar um paraglider e sair voando, aquilo não parecia algo para se descer a pé com cargueira nas costas.
Não posso negar que, apesar de ter sido o lado mais difícil, nos proporcionou uma das vistas mais lindas.
Quando achávamos que a trilha estava acabando e tudo tinha ficado para trás…
…nos aparece o acampamento da Casa Queimada mostrando que ainda havia muito o que andar.
Daí começou um trecho estilo “Isabeloca” sem fim (Travessia Petro-Terê), pedra rolando e dá-lhe tombo! . Fiquei me gabando por não ter levado nenhum e no final, até eu caí! Ninguém aguentava mais descer. Os joelhos pediam para descansar, mas não podíamos. Contratamos um jipe para o resgate, que esperava por nós lá embaixo e sonhávamos com um banho quentinho, um jantar fresquinho e uma caminha confortável para dormir.
Nesta hora me surgiu mais uma dúvida: Estão bem ajustadas essas cargueiras? Fizemos os ajustes no começo da trilha, mas a essa altura do campeonato acho que já estava tudo errado. Acho que emagrecemos um pouquinho e o cinto da cintura caiu… sei lá…
Chegamos na Casa Queimada às 14h40, simplesmente abandonando as cargueiras e nos jogando de qualquer jeito.
Agradeço o jipeiro que levou nossas mochilas para o carro e nos levou de volta para o Alto Caparaó.
Parabéns, Daiany, Ana e Luiza… Vocês simplesmente ARRASARAM!!!
Declaração da Daiany sobre a trilha: Lidar com frio, cansaço, pensamentos que vêm à tona, sobe pedra, cai, desafio pessoal superado, a sensação pós pico de que nada mais te abala, hahahahaha, na verdade sua grandeza pós pico é única! Que todo o medo dá espaço a uma maturidade de lidar com situações desconhecidas e quanto uma cabeça centrada num objetivo, bem trabalhada faz o melhor proveito da máquina corpo.
Acho que o grande perrengue dessa trilha foi a própria trilha pelo lado do Espírito Santo. Se quiserem uma sugestão mais tranquila, acampem no Terreirão, façam o Pico da Bandeira e o Pico do Calçado só com mochila de ataque e voltem pela mesma trilha.
Mas se quiserem uma aventura a mais, façam a travessia e incluam o Pico do Cristal, que para nós não foi desta vez. O Pico do Cristal é o sétimo mais alto do Brasil, com 2.769 m de altitude e com uma trilha mais difícil no sentido de navegação, pelo menos foi o que nos disseram por lá.
Lembrem-se de planejar a trilha com antecedência. Escolham o roteiro e o melhor acampamento para o seu plano. Atualmente, o formulário pode ser enviado a partir do primeiro dia do mês anterior, e são disponíveis apenas 100 vagas por acampamento, assim, melhor mandar seu formulário já nos primeiros minutos. Confiram todos os itens: cargueira, segunda pele, polar, corta vento, tênis, saco de dormir, isolante térmico, luvas, meias, gorros etc.
Espero voltar, após o curso, respondendo as dúvidas que aqui foram apresentadas.
Cinthia Penetta Nunes, agosto/2022
Natural de São Paulo (SP)
Profissional de TI, amante da natureza e esportes radicais.